Sandro Viana Essencio
– Mestrando Unesp/Assis “Literatura e Vida Social” – Bolsista Fapesp –
sandroessencio@yahoo.com.br
Uma boa maneira de se compreender o
filme, “No”, dirigido por Pablo Larraín, certamente passa pelo foco narrativo,
ou melhor, pelos horizontes de visão que perpassam a obra. De imediato, vê-se
na primeira cena que a câmera que focaliza os personagens é dinâmica,
não-estanque. Numa estética que dialoga com as experimentações do movimento
“Dogma 95”, fazendo emergir, do plano da forma para o plano do conteúdo, um
dado pleno de sentido em si mesmo. O movimento Dogma 95, iniciado pelos
diretores dinamarqueses Lars von Trier e Thomas Vinterberg, buscava criar um
cinema mais realista, limpando a arte cinematográfica dos seus aspectos
puramente comerciais através de alguns princípios estéticos e éticos bem
delimitados, conhecidos também como “votos de castidade”:
1.
Filmagens em locais verdadeiros, sem a
utilização de acessórios ou cenografia artificial.
2.
O som não deve jamais ser produzido
separadamente da imagem ou vice-versa.
3.
A câmera deve ser usada na mão. São consentidos
todos os movimentos – ou a imobilidade – devidos aos movimentos do corpo.
4.
O filme deve ser em cores, sem nenhuma
iluminação especial.
5.
São proibidos os truques fotográficos e filtros.
6.
O filme não deve conter nenhuma ação
“superficial”.
7.
São vetados os deslocamentos temporais ou
geográficos.
8.
São inaceitáveis os filmes de gênero.
9.
O filme final deve ser transferido para cópia em
35mm, padrão, com formato de tela 4:3. Originalmente, o regulamento exigia que
o filme deveria ser filmado em 35 mm, mas a regra foi abrandada para permitir a
realização de produções de baixo orçamento.
10. O nome do diretor não deve figurar nos créditos.
“No” não é um filme do movimento
Dogma 95, nem poderia a ele ser vinculado. No entanto, dialoga conscientemente
com expedientes desse movimento e insere nessa tradição novos significados. Um
primeiro dado significativo que salta do plano do enfoque é uma crítica ao cinema
comercial tradicional, à gramática hollywoodiana, que impõe o modo como a vida
deve ser representada, voltando-se contra essa fato estético, o filme rebela-se
no plano do conteúdo contra todo o ideário envolvido com a dominação cultural,
da qual o cinema norte-americano é grande frente de batalha.
Na cena em que o publicitário René
Saavedra e seu patrão estão conversando sobre Urrutia ser ou não um comunista,
René, subitamente, pergunta-lhe sobre o micro-ondas, há um corte e a tomada é
transferida para um restaurante. O patrão começa a explicar que é tecnologia em
ascensão e pergunta-lhe se ofereceram a René a campanha do “Não”. René, por sua
vez, insiste na evasão: “Vamos falar disso ou do micro-ondas?”. No filme, o
micro-ondas atua como um símbolo da crítica ao progresso, ou melhor que símbolo
uma metonímia do desenvolvimento, onde a parte representa o todo. O
“progresso”, por sua vez, figura como discurso evasivo dos militares, “apesar
da crescente repressão temos o progresso”. Esse é um dos grandes achados do
filme que trabalha de maneira muito equilibrada microcosmos e macrocosmos.
Toda obra de arte, que aspire a tal
e não se enquadre apenas nos moldes vendáveis dos produtos da indústria
cultural, possui uma relação especial com o tempo. Refletindo sobre a relação
entre os sujeitos e o tempo experienciado por estes em seus atos cotidianos. No
filme, destacam-se dois tipos de planos temporais: um primeiro é o tempo mítico
ligado à “voz oficial”, que propõe o caráter estanque da vida social,
suprimindo as mudanças inevitáveis da vida social através dos pequenos avanços
experimentados sob o regime de Pinochet; o segundo, fundamentalmente
contra-hegemônico, vale-se da transformação histórica consciente e coletiva, do
tempo que se impulsiona para frente, para a mudança social.
Na campanha publicitária para o
“Não” imbricam-se os dois planos. A voz oficial aparece com destaque de seu
caráter “oficial” e sério, associada sobretudo à violência necessária à sua
perpetuação, enquanto a voz “não-oficial” pauta-se na alegria, na superação da
dominação através do riso regenerador. Ocorre, assim, através do alegre
discurso publicitário a desconstrução da voz oficial e do seu tempo mítico e
fechado, abrindo todo um horizonte de possibilidades humanistas e que visem o desenvolvimento
das pessoas – dos indivíduos – e não mais da economia, do ponto de vista do
mercado internacional.
De maneira geral, o filme rebela-se
contra a imposição de um modo de ser totalizante e inimigo das singularidades.
Quer se esteja pensando no modo comum de se filmar e representar a realidade em
matéria fílmica, quer se tenha em mente os desmandos de um governo autoritário
que limita as liberdades físicas e espirituais de todo um país, a crítica do
filme atinge a vontade de padronização imposta pelo capitalismo tardio através
das ditaduras nos países subdesenvolvidos.
Mesmo a saga pessoal do herói – René
Saavedra – só pode ser devidamente compreendida na junção das vozes oficial e
não-oficial. O contato áspero com a realidade não atinge o herói diretamente
que pode, na sua missão profissional de vender apenas mais um produto, tanto
ligar-se a campanha para o “Sim” quanto ligar-se a campanha para o “Não”. No
entanto, através da figura de sua ex-mulher – fervorosa militante da esquerda
libertária –, René entende que é necessário assumir uma postura responsável
diante da vida, uma postura que seja eticamente orientada. Ainda que sua
conduta seja de distanciamento ante o produto – político – que vende através da
campanha, o simples fato de assumir a responsabilidade pela voz do “Não” é em
si mesmo um posicionamento axiológico do herói, o qual corresponde ao
posicionamento empático do diretor.
Ainda que o filme seja, numa
finalidade última, também um produto e que deva ser comercializado como tal, o
seu conteúdo espiritual é político e o diferencia da série de produtos
semelhantes a que o público está habituado. No entanto, um conteúdo fortemente
ideológico quando trabalhado de maneira artisticamente habilidosa não permite
que a obra se reduza ao panfleto, mas incorpore à sua própria estrutura formal
aspectos da crítica que veicula.