sexta-feira, 23 de maio de 2014

PALESTRA - Considerações sobre leitura e escrita na escola pública de educação básica


 Exposição oral para a abertura do IV Colóquio Baktiniano – Educação, Letramento e Responsividade, promovida pelo Grupo de Estudos Bakhtiniano/ GEB-Assis, ocorrida no Salão Nobre da UNESP – Assis, SP, em 19/05/2014.

Considerações sobre leitura e escrita na escola pública de educação básica

RUTH MARIA BARBIERI


Ao ser convidada a participar desta mesa e tratar de um tema caloroso e polêmico: Educação e Letramento – fiquei por dias buscando algumas leituras tentando articulá-las ao meu repertório sobre este assunto que, embora complexo, me é caro e motivo de preocupação , em relação a índices de avaliações externas, resultados internos de desempenho de alunos e a própria dinâmica da comunicação que ocorre na sociedade e na escola.
Lembrei-me, também, de um fragmento de Carlos Drummond de Andrade, no qual ele expressa perfeitamente o sentimento contraditório presente no seu ofício: “Lutar com palavras é a luta mais vã, entanto lutamos mal rompe manhã...”

Caros!
Permitam-me trazê-lo para esta noite...
Lutar com palavras é a luta mais vã
Entanto lutamos mal rompe manhã (...)
Deixam-se enlaçar, tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça e nem há sevícia
que as traga de novo ao centro da praça.

E é assim que às vezes me sinto, diante de desafios rigorosos, porém necessários ao desenvolvimento das reflexões sobre a teoria, especialmente a desta noite, (a teoria bakhtiniana e sua relação com a prática escolar). E mesmo diante deste paradoxo, diante do rigor deste desafio, muitas vezes por meio de palavras que súbito fugirão, tecerei algumas considerações sobre leitura e escrita na escola pública de educação básica. Farei aqui um breve relato sobre como os documentos legais abordam leitura e escrita na Educação Básica, objeto de estudo do meu campo de atuação profissional.
Já em seus artigos iniciais, a Lei de Diretrizes e Bases (Lei Federal nº 9394, de 20/12/1996) prevê que a Educação abrange os processos formativos que se desenvolvem em todos os âmbitos da convivência humana, e que deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à pratica social.
Além disso, a Educação tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Se seguirmos além, poderemos observar, no artigo 3º, que o ensino será ministrado, de acordo com alguns princípios, dentre outros, a vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.
Isso posto, a reflexão que me permito fazer é que a LDB associa a Educação às práticas sociais e ao trabalho, devendo os responsáveis pelo ensino promover tal interação. Não podemos, assim, furtar-nos às exigências contemporâneas, ao mundo tecnológico que nos envolve, às demandas do mundo do trabalho, tais como formar o cidadão para atuar diante das necessidades desta sociedade de consumo, globalizada e hegemônica.
Uma necessidade que se impõe, dentre tantas, é a capacidade de os jovens realizarem um aprendizado formal, permeado pelo conhecimento que se constrói pela leitura e escrita. Capacidade esta que reflete nas interações sociais que ocorrem no âmbito da escola e nas demais práticas sociais. cabe à escola realizar a significação do conhecimento formal, possibilitando ao aluno atuar conscientemente nas esferas sociais em que vive. Cabe à escola, capacitar o aluno para enfrentar os desafios contemporâneos que se impõem constantemente, ora transformando a realidade em que vive, ora transformando-se para inserir-se no mundo do trabalho e da tecnologia, ora buscando preservar o meio ambiente e/ou o seu espaço social, por exemplo.
Já, as Diretrizes curriculares nacionais gerais para a educação básica, embasadas pela LDB, revisadas nos anos anteriores e republicadas em 2013, explicitam mais a necessidade do desenvolvimento da leitura e da escrita como uma prática, uma construção social... Em sua página 50, ao tratarem do projeto político-pedagógico da escola, orientam a comunidade educacional a engendrar o entrelaçamento entre trabalho, ciência, tecnologia, cultura e arte; e que, por meio de atividades específicas para cada etapa do desenvolvimento humano, prevejam, dentre outros, a valorização da leitura em todos os campos do conhecimento, desenvolvendo a capacidade de letramento dos estudantes;
Em sua página 26, ao tratarem da organização do currículo para a educação básica, as diretrizes explicitam a necessidade de o conhecimento científico e as novas tecnologias estabelecerem-se como condição para a pessoa se posicionar frente a processos e inovações que a afetam. Alertam que tanto o docente quanto o estudante e o gestor requerem uma escola em que a cultura, a arte, a ciência e a tecnologia estejam presentes no cotidiano escolar, desde o início da Educação Básica.
Assim, podemos depreender que a leitura e a escrita são as principais ferramentas para a aquisição desses saberes, e leitura inserida e contextualizada na dinâmica do dia a dia escolar. Não a leitura fragmentada, de pontos escolares a serem decorados e reproduzidos, mas textos em variados gêneros que trazem em seu bojo as práticas sociais comuns em que circulam.
Tem sido um movimento muito lento, tem sido muito difícil realizar esta transição – da escola tradicional, facetada e compartimentada, em todos os sentidos inclusive nas disciplinas curriculares e seus conteúdos para uma educação que atenda aos princípios que embasam a legislação escolar... Contudo, estados e municípios já vêm se fortalecendo a partir de parcerias com as universidades, práticas mais acertadas em relação à leitura, trabalho de formação continuada de professores e gestores, programas e projetos de incentivo à leitura e construção e/ou reconstrução de currículos unificados, porém flexíveis e passíveis de adequações, ações que deem conta do processo de letramento de todos os alunos.
É sabido que conciliar diferenças culturais, sociais, socioeconômicas é extremamente complexo, pois estão jogo muitos valores que precisam ser superados, considerados, revistos...
Questões que ultrapassam o âmbito profissional, acadêmico; questões muitas vezes individuais que fogem do trato oficial, e que em confronto com o embasamento teórico, com a legislação vigente, com as orientações expressas dos documentos oficiais, não permitem que muitos indivíduos (profissionais da educação básica) saiam de sua zona de conforto e reajam positivamente às intervenções necessárias na sua prática.
Temos consciência desses conflitos! Mas sempre vamos insistir nas intervenções, nas reflexões acerca dos movimentos emancipadores que requerem novas posturas frente às demandas das novas gerações...
Paralelamente à normatização federal, embasadora da legislação dos sistemas estaduais e municipais de educação, foi se construindo o Currículo Oficial do Estado de São Paulo a partir de 2008, consolidando-se por força da necessidade de unificação dos componentes e conteúdos das disciplinas do ensino para todas as escolas públicas estaduais de educação básica, em atendimento às exigências das comunidades para que o órgão público oferecesse um ensino de melhor qualidade em consonância com as necessidades contemporâneas, e também por possibilitar um parâmetro de medida confiável dos níveis de desempenho dos alunos, como indicadores para a avaliação externa.
Em sua apresentação, o currículo oficial do estado de São Paulo traz os princípios sob os quais se construiu: a escola que aprende; o currículo como espaço de cultura; as competências como eixo de aprendizagem; a articulação das competências para aprender; a contextualização no mundo do trabalho; e como não poderia deixar de ser a prioridade da competência de leitura e de escrita.
Ao tratar da prioridade para a leitura e para escrita, explicita a necessidade de o aluno saber usar a língua em situações subjetivas ou objetivas que exijam graus de distanciamento e de reflexão sobre contextos e estatuto de interlocutores, ou seja, a competência comunicativa vista pelo prisma da referência do valor social e simbólico da atividade linguística, no âmbito dos inúmeros discursos concorrentes.
Segue argumentando que devido a esse caráter essencial da competência de leitura e de escrita para a aprendizagem dos conteúdos curriculares de todas as áreas e disciplinas, a responsabilidade por sua aprendizagem e avaliação cabe a todos os professores, que devem transformar seu trabalho em oportunidades nas quais os alunos possam aprender e consigam consolidar o uso da Língua Portuguesa e das outras linguagens e códigos que fazem parte da cultura, bem como das formas de comunicação em cada uma delas.
O desenvolvimento da competência linguística do aluno, nessa perspectiva, não está pautado na exclusividade do domínio técnico de uso da língua legitimada pela norma-padrão, mas, principalmente, no domínio da competência performativa: o saber usar a língua em situações subjetivas ou objetivas que exijam graus de distanciamento e de reflexão sobre contextos e estatutos de interlocutores, ou seja, a competência comunicativa vista pelo prisma da referência do valor social e simbólico da atividade linguística, no âmbito dos inúmeros discursos concorrentes.
A leitura e a produção de textos são atividades permanentes na escola, no trabalho, nas relações interpessoais e na vida. Por isso mesmo, o Currículo proposto tem por eixo a competência geral de ler e de produzir textos, ou seja, o conjunto de competências e habilidades específicas de compreensão e de reflexão crítica intrinsecamente associado ao trato com o texto escrito.
As experiências profícuas de leitura pressupõem o contato do aluno com a diversidade de textos, tanto do ponto de vista da forma, quanto no que diz respeito ao conteúdo. Além do domínio da textualidade propriamente dita, o aluno vai construindo, ao longo de sua aprendizagem e de sua vivência no mundo escolar, um repertório cultural específico relacionado às diferentes áreas do conhecimento que usam a palavra escrita para o registro de ideias, de experiências, de conceitos, de sínteses etc.
Na minha concepção, a maioria dos indivíduos que passarem pela escola pública de educação básica, em que a leitura e a escrita sejam princípios privilegiados, como os descritos anteriormente, no mínimo terão condições de adquirir autonomia; interagir com culturas diferentes; expressar-se de acordo com o contexto social ou profissional em que atua ou em que pretende atuar; apreciar esteticamente diferentes manifestações culturais; compreender criticamente a dinâmica do mundo globalizado; responder às demandas de sua própria comunidade e agir de maneira a propor soluções para problemas; preservar ou transformar ambientes urbanos e compreender os fenômenos naturais preservando o ambiente em que vive; participar, de forma ativa, de comunidades acadêmicas, culturais, artísticas ou científicas; atuar no mundo do trabalho com competência técnica e criticidade; compreender que embora inserido numa sociedade globalizada, excludente e preconceituosa como a nossa, tem direito de usufruir dos bens produzidos pela humanidade e tem potencialidades para produzir conhecimento científico ou arte, nas suas mais diversas manifestações...
Entendo que os sistemas de ensino devem promover espaços de reflexões, de compartilhamento de saberes, ideias, práticas de sucesso em sala de aula, enfim... fomentar a criação de comunidades de estudo a partir de princípios éticos de assertividade, apoio mútuo, revisão de práticas, abertura para o novo, para a transformação consciente, a fim de que a prioridade para a leitura e escrita nas escolas seja atendida por todas as suas instâncias profissionais.
Entendo que universidade e profissionais de educação básica devam encontrar-se mais para compreenderem cada um a lógica de atuação do outro, e buscar um caminho menos árduo para a aprendizagem daquele que precisa ensinar no dia a dia, independente de se preparar ou não para isso, estudar novas teorias ou não, acreditar nessas teorias ou não, conciliar seus dramas individuais com os dramas dos seus alunos ou não...
Quando conseguirmos uma integração mais assertiva, um comprometimento ético em todos os âmbitos, certamente que a educação avançará, que novas intervenções no documento legal será uma demanda fundamentada pela parceria e pressão desses profissionais, e o governante necessariamente deverá atender...

Não sei se esse meu desejo é utopia, sei que é por essa educação que luto dia a dia, pode até ser uma luta vã... entanto luto mal rompe manhã

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