Exposição
oral para a abertura do IV Colóquio Baktiniano – Educação, Letramento e
Responsividade, promovida pelo Grupo de Estudos Bakhtiniano/ GEB-Assis,
ocorrida no Salão Nobre da UNESP – Assis, SP, em 19/05/2014.
Considerações
sobre leitura e escrita na escola pública de educação básica
RUTH MARIA BARBIERI
Ao
ser convidada a participar desta mesa e tratar de um tema caloroso e polêmico:
Educação e Letramento – fiquei por dias buscando algumas leituras tentando
articulá-las ao meu repertório sobre este assunto que, embora complexo, me é
caro e motivo de preocupação , em relação a índices de avaliações externas,
resultados internos de desempenho de alunos e a própria dinâmica da comunicação
que ocorre na sociedade e na escola.
Lembrei-me,
também, de um fragmento de Carlos Drummond de Andrade, no qual ele expressa
perfeitamente o sentimento contraditório presente no seu ofício: “Lutar com
palavras é a luta mais vã, entanto lutamos mal rompe manhã...”
Caros!
Permitam-me trazê-lo para esta noite...
Lutar com palavras é a luta mais vã
Entanto lutamos mal rompe manhã (...)
Deixam-se enlaçar, tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça e nem há sevícia
que as traga de novo ao centro da praça.
E é assim que às vezes me sinto, diante de desafios
rigorosos, porém necessários ao desenvolvimento das reflexões sobre a teoria,
especialmente a desta noite, (a teoria bakhtiniana e sua relação com a prática
escolar). E mesmo diante deste paradoxo, diante do rigor deste desafio, muitas
vezes por meio de palavras que súbito fugirão, tecerei algumas
considerações sobre leitura e escrita na escola pública de educação básica. Farei
aqui um breve relato sobre como os documentos legais abordam leitura e escrita
na Educação Básica, objeto de estudo do meu campo de atuação profissional.
Já em seus artigos iniciais, a Lei de Diretrizes e
Bases (Lei Federal nº 9394, de 20/12/1996) prevê que a Educação abrange
os processos formativos que se desenvolvem em todos os âmbitos da convivência
humana, e que deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à pratica social.
Além disso, a Educação tem por finalidade o pleno
desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho. Se seguirmos além, poderemos observar,
no artigo 3º, que o ensino será ministrado, de acordo com alguns princípios,
dentre outros, a vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as
práticas sociais.
Isso posto, a reflexão que me permito fazer é que a
LDB associa a Educação às práticas sociais e ao trabalho, devendo os
responsáveis pelo ensino promover tal interação. Não podemos, assim, furtar-nos
às exigências contemporâneas, ao mundo tecnológico que nos envolve, às demandas
do mundo do trabalho, tais como formar o cidadão para atuar diante das necessidades
desta sociedade de consumo, globalizada e hegemônica.
Uma
necessidade que se impõe, dentre tantas, é a capacidade de os jovens realizarem
um aprendizado formal, permeado pelo conhecimento que se constrói pela leitura
e escrita. Capacidade esta que reflete nas interações sociais que ocorrem no
âmbito da escola e nas demais práticas sociais. cabe à escola realizar a
significação do conhecimento formal, possibilitando ao aluno atuar
conscientemente nas esferas sociais em que vive. Cabe à escola, capacitar o
aluno para enfrentar os desafios contemporâneos que se impõem constantemente,
ora transformando a realidade em que vive, ora transformando-se para inserir-se
no mundo do trabalho e da tecnologia, ora buscando preservar o meio ambiente
e/ou o seu espaço social, por exemplo.
Já, as Diretrizes curriculares nacionais gerais
para a educação básica, embasadas pela LDB, revisadas nos anos anteriores e
republicadas em 2013, explicitam mais a necessidade do desenvolvimento da
leitura e da escrita como uma prática, uma construção social... Em sua página
50, ao tratarem do projeto político-pedagógico da escola, orientam a comunidade
educacional a engendrar o entrelaçamento entre trabalho, ciência, tecnologia,
cultura e arte; e que, por meio de atividades específicas para cada etapa do
desenvolvimento humano, prevejam, dentre outros, a valorização da leitura em
todos os campos do conhecimento, desenvolvendo a capacidade de letramento dos
estudantes;
Em sua página 26, ao tratarem da organização do currículo
para a educação básica, as diretrizes explicitam a necessidade de o
conhecimento científico e as novas tecnologias estabelecerem-se como condição
para a pessoa se posicionar frente a processos e inovações que a afetam.
Alertam que tanto o docente quanto o estudante e o gestor requerem uma
escola em que a cultura, a arte, a ciência e a tecnologia
estejam presentes no cotidiano escolar, desde o início da Educação
Básica.
Assim, podemos depreender que a leitura e a escrita
são as principais ferramentas para a aquisição desses saberes, e leitura
inserida e contextualizada na dinâmica do dia a dia escolar. Não a leitura
fragmentada, de pontos escolares a serem decorados e reproduzidos, mas textos
em variados gêneros que trazem em seu bojo as práticas sociais comuns em que
circulam.
Tem sido um movimento muito lento, tem sido muito
difícil realizar esta transição – da escola tradicional, facetada e
compartimentada, em todos os sentidos inclusive nas disciplinas curriculares e
seus conteúdos para uma educação que atenda aos princípios que embasam a
legislação escolar... Contudo, estados e municípios já vêm se fortalecendo a
partir de parcerias com as universidades, práticas mais acertadas em relação à
leitura, trabalho de formação continuada de professores e gestores, programas e
projetos de incentivo à leitura e construção e/ou reconstrução de currículos
unificados, porém flexíveis e passíveis de adequações, ações que deem conta do
processo de letramento de todos os alunos.
É sabido que conciliar diferenças culturais, sociais,
socioeconômicas é extremamente complexo, pois estão jogo muitos valores que
precisam ser superados, considerados, revistos...
Questões
que ultrapassam o âmbito profissional, acadêmico; questões muitas vezes
individuais que fogem do trato oficial, e que em confronto com o embasamento
teórico, com a legislação vigente, com as orientações expressas dos documentos
oficiais, não permitem que muitos indivíduos (profissionais da educação básica)
saiam de sua zona de conforto e reajam positivamente às intervenções
necessárias na sua prática.
Temos
consciência desses conflitos! Mas sempre vamos insistir nas intervenções, nas
reflexões acerca dos movimentos emancipadores que requerem novas posturas
frente às demandas das novas gerações...
Paralelamente à normatização federal, embasadora da
legislação dos sistemas estaduais e municipais de educação, foi se construindo
o Currículo Oficial do Estado de São Paulo a partir de 2008,
consolidando-se por força da necessidade de unificação dos componentes e
conteúdos das disciplinas do ensino para todas as escolas públicas estaduais de
educação básica, em atendimento às exigências das comunidades para que o órgão
público oferecesse um ensino de melhor qualidade em consonância com as
necessidades contemporâneas, e também por possibilitar um parâmetro de medida
confiável dos níveis de desempenho dos alunos, como indicadores para a
avaliação externa.
Em sua apresentação, o currículo oficial do estado de
São Paulo traz os princípios sob os quais se construiu: a escola que
aprende; o currículo como espaço de cultura; as competências como eixo de
aprendizagem; a articulação das competências para aprender; a contextualização
no mundo do trabalho; e como não poderia deixar de ser a prioridade da
competência de leitura e de escrita.
Ao tratar da prioridade para a leitura e para escrita,
explicita a necessidade de o aluno saber usar a língua em situações
subjetivas ou objetivas que exijam graus de distanciamento e de reflexão sobre
contextos e estatuto de interlocutores, ou seja, a competência comunicativa
vista pelo prisma da referência do valor social e simbólico da atividade
linguística, no âmbito dos inúmeros discursos concorrentes.
Segue argumentando que devido a esse caráter essencial
da competência de leitura e de escrita para a aprendizagem dos conteúdos
curriculares de todas as áreas e disciplinas, a responsabilidade por sua
aprendizagem e avaliação cabe a todos os professores, que devem
transformar seu trabalho em oportunidades nas quais os alunos possam aprender e
consigam consolidar o uso da Língua Portuguesa e das outras linguagens e
códigos que fazem parte da cultura, bem como das formas de comunicação em cada
uma delas.
O desenvolvimento da competência linguística do aluno,
nessa perspectiva, não está pautado na exclusividade do domínio técnico de uso
da língua legitimada pela norma-padrão, mas, principalmente, no domínio da
competência performativa: o saber usar a língua em situações subjetivas ou
objetivas que exijam graus de distanciamento e de reflexão sobre contextos e
estatutos de interlocutores, ou seja, a competência comunicativa vista
pelo prisma da referência do valor social e simbólico da atividade
linguística, no âmbito dos inúmeros discursos concorrentes.
A leitura e a produção de textos são atividades
permanentes na escola, no trabalho, nas relações
interpessoais e na vida. Por isso mesmo, o Currículo proposto tem
por eixo a competência geral de ler e de produzir textos, ou seja, o conjunto
de competências e habilidades específicas de compreensão e de reflexão
crítica intrinsecamente associado ao trato com o texto escrito.
As experiências profícuas de leitura pressupõem o contato
do aluno com a diversidade de textos, tanto do ponto de vista da forma,
quanto no que diz respeito ao conteúdo. Além do domínio da textualidade
propriamente dita, o aluno vai construindo, ao longo de sua aprendizagem
e de sua vivência no mundo escolar, um repertório cultural específico
relacionado às diferentes áreas do conhecimento que usam a palavra escrita para
o registro de ideias, de experiências, de conceitos, de sínteses etc.
Na minha concepção, a maioria dos indivíduos que
passarem pela escola pública de educação básica, em que a leitura e a escrita
sejam princípios privilegiados, como os descritos anteriormente, no mínimo
terão condições de adquirir autonomia; interagir com culturas diferentes;
expressar-se de acordo com o contexto social ou profissional em que atua ou em
que pretende atuar; apreciar esteticamente diferentes manifestações culturais; compreender
criticamente a dinâmica do mundo globalizado; responder às demandas de sua
própria comunidade e agir de maneira a propor soluções para problemas;
preservar ou transformar ambientes urbanos e compreender os fenômenos naturais
preservando o ambiente em que vive; participar, de forma ativa, de comunidades
acadêmicas, culturais, artísticas ou científicas; atuar no mundo do trabalho
com competência técnica e criticidade; compreender que embora inserido numa
sociedade globalizada, excludente e preconceituosa como a nossa, tem direito de
usufruir dos bens produzidos pela humanidade e tem potencialidades para
produzir conhecimento científico ou arte, nas suas mais diversas
manifestações...
Entendo que os sistemas de ensino devem promover
espaços de reflexões, de compartilhamento de saberes, ideias, práticas de
sucesso em sala de aula, enfim... fomentar a criação de comunidades de estudo a
partir de princípios éticos de assertividade, apoio mútuo, revisão de práticas,
abertura para o novo, para a transformação consciente, a fim de que a
prioridade para a leitura e escrita nas escolas seja atendida por todas as suas
instâncias profissionais.
Entendo que universidade e profissionais de educação
básica devam encontrar-se mais para compreenderem cada um a lógica de atuação
do outro, e buscar um caminho menos árduo para a aprendizagem daquele que
precisa ensinar no dia a dia, independente de se preparar ou não para isso,
estudar novas teorias ou não, acreditar nessas teorias ou não, conciliar seus
dramas individuais com os dramas dos seus alunos ou não...
Quando conseguirmos uma integração mais assertiva, um
comprometimento ético em todos os âmbitos, certamente que a educação avançará,
que novas intervenções no documento legal será uma demanda fundamentada pela parceria
e pressão desses profissionais, e o governante necessariamente deverá
atender...
Não sei se esse meu desejo é utopia, sei que é por
essa educação que luto dia a dia, pode até ser uma luta vã... entanto luto
mal rompe manhã.
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