quinta-feira, 25 de setembro de 2014

BAKHTIN, O HOMEM E SEU DUPLO - INTRODUÇÃO DO MARXISMO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM

O GRUPO DE ESTUDOS BAKHTINIANOS DA UNESP ASSIS  oferece  mais um texto importante para os estudiosos de Bakhtin.
Boas Leituras e estudos



INTRODUÇÃO
l. Bakhtin, o homem e seu duplo

        M. M. Bakhtin nasceu em 1895, em Oriol, numa família da velha nobreza arruinada, de um pai empregado de banco. Passou sua infância em Oriol e a adolescência em Vilnius e Odessa. Estudou na Universidade de Odessa, depois na de São Petersburgo, de onde saiu diplomado em História e Filologia, em 1918. Em 1920,instalou-se em Vitebsk, onde ocupou diversos cargos de ensino.Casou-se em 1920 com Helena Okolovitch, que foi sua fiel colaboradora durante meio século. Bakhtin pertencia a um pequeno círculo de intelectuais e de artistas entre os quais se encontravam Marc Chagall e o musicólogo Sollertinsky, amigo íntimo de Chostakovitch. Também fazia parte deste círculo um jovem professor do Conservatório de Música de Vitebsk, V. N. Volochínov, e ainda P. N. Medviédiev, empregado de uma casa editora. Os dois tornaram-se alunos, amigos devotados e ardorosos admiradores de Bakhtin. Este círculo, conhecido sob o nome de "círculo de Bakhtin", foi um cadinho de idéias inovadoras, numa época de muita criatividade, particularmente nos domínios da arte e das ciências humanas. Ainda que contemporâneo dos movimentos formalista e futurista, ele não participou de nenhum deles.
        Em 1923, atacado de osteomielite, Bakhtin retornou a Petrogrado. Impossibilitado de trabalhar regularmente, deve ter passado por uma situação material difícil. Seus discípulos e admiradores, Volochínov e Medviédiev, seguiram-no a Petrogrado. Animados pelo desejo de vir ajudar financeiramente a seu mestre, ao mesmo tempo, divulgar suas idéias, ofereceram seu nomes a fim de tornar possível a publicação de suas primeiras obras. Freidizm (O Freudismo, Leningrado, 1927) e Marxismoe Filosofia da Linguagem (Leningrado, 1929) saíram sob o nome de Volochínov. Formalni métod v literaturoviédenie. Kritítcheskoievvdiénie v sotsiologuítcheskuiu poétiku (O Método Formalista Aplicado à Crítica Literária. Introdução Crítica à Poética Sociológica) que constituiu uma crítica aos formalistas, foi publicado em1928, também em Leningrado sob a assinatura de Medviédiev.l
Por que, então Bakhtin não os publicou com seu próprio nome?Não há dúvidas quanto à paternidade de suas obras. O conteúdo se inscreve perfeitamente na linha de suas publicações assinadas e, além disso, dispomos de testemunhos diretos. De qualquer modo, na época, o segredo foi bem guardado, pois Borís Pasternak.em uma carta endereçada a Medviédiev, manifestou seu entusiasmo e sua admiração pela presumida obra deste último e confessa que jamais pudera imaginar que em Medviédiev se ocultava "um tal filósofo". Então, por que esse jogo de testa-de-ferro? Segundo o professor V. V. Ivánov, amigo e aluno de Bakhtin, haveria duas espécies de motivos: em primeiro lugar, Bakhtin teria recusado as modificações impostas pelo editor; de caráter intransigente, ele teria preferido não publicar do que mudar uma vírgula; Volochínov e Medviédiev ter-se-iam, então, proposto a endossar as modificações. A outra ordem de motivos seria mais pessoal e ligada ao caráter de Bakhtin, ao seu gosto pela máscara e pelo desdobramento e também, parece, à sua profunda modéstia científica.Ele teria professado que um pensamento verdadeiramente inovador não tem necessidade, para assegurar sua duração, de ser assinado por seu autor. A este respeito, o professor Ivánov o compara a Kierkegaard, que também se escondeu sob pseudônimos. De qualquer forma, em 1929, no mesmo ano em que Volochínov assinava Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin publicou, finalmente, um primeiro livro com seu próprio nome Probliemi tvórtchestva Dostoiesvskovo (Problemas da Obra de Dostoievski 2). Ele dedicará o resto de sua vida de pesquisador à análise estilística e literária.
        Volochínov e Medviédiev desapareceram nos anos trinta. Nesta época, Bakhtin vivia na fronteira da Sibéria e do Casaquistão, em Kustanai. Sempre ensinando, começou a compor suamonografia sobre Rabelais. Em 1936, foi nomeado para o Instituto Pedagógico de Saransk. Em 1937, instalou-se não muito longe de Moscou, em Kímri, onde viveu uma vida apagada até1945, ensinando no colégio local e participando dos trabalhosdo Instituto de Literatura da Academia de Ciências da U.R.S.S. Aí defendeu sua tese sobre Rabelais em 1946. De 1945 a 1961,data de sua aposentadoria, ensina de novo em Saransk, terminando sua carreira na universidade desta cidade.
A partir de 1963, começou a gozar de uma certa notoriedade, sobretudo após a reedição de sua obra sobre Dostoievski (1963) e de sua tese sobre Rabelais: Tvórtchestvo François Rabelais i naródnaia kultura sriednevekóvia i Renessansa (A Obra de François Rabelais e a Cultura Popular da Idade Média e da renascença),Moscou, 1963.Em 1969, instalou-se em Moscou, onde publicou contribuições nas revistas Vopróssi literaturi (Questões de Literatura) e Kontiekst (Contexto). Morreu em Moscou, em 1975, após uma longa doença.

Marxismo e Filosofia da Linguagem
        É  difícil afirmar com exatidão quais as partes do texto que se devem a Volochínov. Sempre segundo o professor Ivánov,que deve a informação ao próprio Bakhtin, o título e certas partes do texto ligadas à escolha deste título são de Volochínov. Não se podera, evidentemente, colocar em questão as convicções marxistas de Bakhtin; o livro é marxista do começo ao fim. Todavia como sublinha Jakobson em seu prefácio, o título não deixa de surpreender, pois o conteúdo do livro é muito mais rico do que a capa deixa entrever. Bakhtin expõe bem a necessidade de uma abordagem marxista da filosofia da linguagem mas ele aborda, ao mesmo tempo, praticamente todos os domínios das ciências humanas, por exemplo, a psicologia cognitiva, a etnologia,a pedagogia das línguas, a comunicação, a estilística, a crítica literária e coloca, de passagem, os fundamentos da semiologia moderna. Aliás, ele possui de todos esses domínios uma visão notavelmente unitária e muito avançada em relação a seu tempo.Contudo, e nesse aspecto o subtítulo Tentativa de aplicação do método sociológico em lingüística é muito revelador; trata-se,principalmente, de um livro sobre as relações entre linguagem e sociedade, colocado sob o signo da dialética do signo, enquanto efeito das estruturas Sociais.
        Sendo o signo e a enunciação de natureza social, em que me-dida a linguagem determina a consciência, a atividade mental; em que medida a ideologia determina a linguagem? Tais são as questões que constituem o fio condutor do livro. Bakhtin foi o primeiro a abordar essas questões, que a humanidade se colocou muitas vezes antes dele, numa perspectiva marxista. Portanto, é indispensável situar sua reflexão em relação ao problema fundamental que foi suscitado pela aplicação da análise marxista à língua--a língua é uma superestrutura?--e conseqüentemente,em relação à controvérsia da lingüística soviética em torno desta questão, controvérsia à qual Stálin pôs fim em 1950 com A Propósito do Marxismo em Lingüística.
Ao mesmo tempo, é preciso notar que, por sua crítica a Saussure-- o representante mais eminente do que Bakhtin chamou o objetivismo abstrato--e aos excessos do estruturalismo nascente,ele antecede de quase cinqüenta anos as orientações da lingüística moderna. Veremos que os dois aspectos se confundem.
        Bakhtin coloca, em primeiro lugar, a questão dos dados reais da lingüística, da natureza real dos fatos da língua. A língua é,como para Saussure, um fato social, cuja existência se funda nas necessidades da comunicação. Mas, ao contrário da lingüística unificante de Saussure e de seus herdeiros, que faz da língua um objeto abstrato ideal, que se consagra a ela como sistema sincrônico homogêneo e rejeita suas manifestações (a fala) individuais,Bakhtin, por sua vez, valoriza justamente a fala, a enunciação, e afirma sua natureza social, não individual: a fala está indissoluvelmente ligada às condições da comunicação, que, por sua vez,estão sempre ligadas às estruturas sociais.
Se a fala é o motor das transformações lingüísticas, ela não concerne os indivíduos; com efeito, a palavra é a arena onde se confrontam aos valores sociais contraditórios; os conflitos da língua refletem os conflitos de classe no interior mesmo do sistema: comunidade semiótica e classe social não se recobrem. A comunicação verbal, inseparável das outras formas de comunicação,implica conflitos, relações de dominação e de resistência, adaptação ou resistência à hierarquia, utilização da língua pela classe dominante para reforçar seu poder etc. Na medida em que às diferenças de classe correspondem diferenças de registro ou mesmo de sistema (assim, a língua sagrada dos padres, o "terrorismo verbal" da classe culta etc.), esta relação fica ainda mais evidente; mas Bakhtin se interessa, primeiramente, pelos conflitos interior de um mesmo sistema. Todo signo é ideológico; a ideologia é um reflexo das estruturas sociais; assim, toda modificação da ideologia encadeia uma modificação da língua. A evolução da língua obedece a uma dinâmica positivamente conotada, ao contrário do que afirma a concepção saussuriana. A variação é inerente à língua e reflete variações sociais; se, efetivamente, a evolução, por um lado, obedece a leis internas (reconstrução analógica, economia), ela é, sobretudo, regida por leis externas, de Natureza social. O signo dialético, dinâmico, vivo, opõe-se ao"sinal" inerte que advém da análise da língua como sistema sincrônico abstrato.  O que leva Bakhtin a atacar a noção de sincronia. E o surpreendente, é que Bakhtin não critica Saussure em nome da teoria marxista, largamente proclamada; ele o critica no interior do seu próprio domínio, isto é, encontra a falha no sistema de oposição língua/fala, sincronia/diacronia.
        No plano científico, objetivo, o sistema sincrônico é uma ficção; com efeito, em nenhum momento o sistema está realmente em equilíbrio, e isto todos os lingüistas admitem. Mas, para o locutor-ouvinte ingênuo, usuário da língua, esta não é tampouco um sistema estável e abstrato de sinais constantemente iguais a si mesmos e isolados por procedimentos de análise distribucional. Ao contrário, a forma lingüística é sempre percebida como um signo mutável. A entonação expressiva, a modalidade apreciativa sem a qual não haveria enunciação, o conteúdo ideológico, o relacionamento com uma situação social determinada, afetam a significação. O valor novo do signo, relativamente a um "tema" sempre novo, é a única realidade para o locutor-ouvinte. Só a dialética pode resolver a contradição aparente entre a unicidade e a pluralidade da significação. O objetivismo abstrato favorece arbitrariamente a unicidade, a fim de poder"prender a palavra em um dicionário". O signo é, por natureza,vivo e móvel, plurivalente; a classe dominante tem interesse em torná-lo monovalente.   Trata-se, justamente, de uma crítica ao distribucionalismo "neutro".
        Segundo Bakhtin, a lingüística saussuriana (o objetivismo abstrato), que pensa estar afastada dos procedimentos da filologia,na realidade, apenas os perpetua. Daí a crítica implícita da noção de corpus, prática reducionista que tende a "reificar" a linguagem. Toda enunciação, fazendo parte de um processo de comunicação ininterrupto, é um elemento do diálogo, no sentido amplo do termo, englobando as produções escritas. O corpus transforma as enunciações em monólogos. Nesse sentido, o procedimento dos lingüistas é o mesmo que o dos filólogos. Donde a idéia sempre reiterada de que o corpus, fundamento da lingüística descritiva e funcionalista, leva ao descritivismo abstrato e faz do signo um sinal (análise distribucional, estabelecimento de classes de contexto e de classes de unidade que fornecem, implicitamente, uma norma, mesmo se o método se pretende "objetivo" e "não normativo" pelo fato de se abster de evocar regras de caráter prescritivo). Os imperativos pedagógicos não deixam de ter influência sobre a prática do lingüista, na medida em que se procura transmitir um objeto-língua tão homogêneo quanto possível.
        Bakhtin coloca igualmente em evidência a inadequação de todos os procedimentos de análise lingüística (fonéticos, morfológicos e sintáticos) para dar conta da enunciação completa,seja ela uma palavra, uma frase ou uma seqüência de frases.A enunciação, compreendida como uma réplica do diálogo social,e a unidade de base da língua, trate-se de discurso interior (diálogo consigo mesmo) ou exterior. Ela é de natureza social, portanto ideológica. Ela não existe fora de um contexto social, já que cada locutor tem um "horizonte social". Há sempre um interlocutor, ao menos potencial. O locutor pensa e se exprime para um auditório social bem definido. "A filosofia marxista da linguagem deve colocar como base de sua doutrina a enunciação,como realidade da língua e como estrutura sócio-ideológica."
        "O signo e a situação social estão indissoluvelmente ligados." Ora, todo signo é ideológico. Os sistemas semióticos servem para exprimir a ideologia e são, portanto, modelados por ela. A palavra é o signo ideológico por excelência; ela registra as menores variações das relações sociais, mas isso não vale somente para os sistemas ideológicos constituídos, já que a "ideologia do cotidiano", que se exprime na vida corrente, é o cadinho onde se formam e se renovam as ideologias constituídas.
Se a língua é determinada pela ideologia, a consciência, portanto o pensamento, a atividade mental", que são condicionados pela linguagem, são modelados pela ideologia. Contudo, todas estas relações são inter-relações recíprocas, orientadas, é verdade,mas sem excluir uma contra-ação. O psiquismo e a ideologia estão em "interação dialética constante". Eles têm como terreno comum o signo ideológico: "O signo ideológico vive graças à sua realização no psiquismo e, reciprocamente, a realização psíquica vive do suporte ideológico". A questão exige mais que um tratamento esquemático. Na verdade, a distinção essencial que Bakhtin faz é entre "a atividade mental do eu" (não modelada ideologicamente, próxima da reação fisiológica do animal,característica do indivíduo pouco socializado) e a "atividade mental do nós" (forma superior que implica a consciência de classe)."O pensamento não existe fora de sua expressão potencial e, por conseqüência, fora da orientação social desta expressão e do próprio pensamento".
Também não se pode tratar esquematicamente a questão da língua como superestrutura. Nos anos 20, no momento em que Bakhtin compõe sua obra, duas tendências se confrontam em lingüística, o formalismo e o sociologismo dito "vulgar", o marxismo. Nicolau Marr leva a suas últimas conseqüências a assimilação da língua a uma superestrutura: existência de línguas de classe e de gramáticas de classe independentes e teoria da evolução' por saltos"; é difícil confirmar essa teoria nos fatos: a toda revolução na base deveria corresponder uma tão pronta evolução da língua. Tal é, em todo caso, a imagem, sem dúvida parcialmente deformada, que se pode fazer da teoria de Marr a partir da controvérsia de 1950. Bakhtin, por sua vez, insiste sobre a noção de processo ininterrupto. Para ele, a palavra veicula, de maneira privilegiada, a ideologia; a ideologia é uma superestrutura, as transformações sociais da base refletem-se na ideologia e, portanto, na língua que as veicula. A palavra serve como"indicador" das mudanças. Bakhtin não afirma jamais que a língua é uma superestrutura no sentido estrito definido por Marr, o qual acarretará, em 1950, a inapelável condenação stalinista: a base e as superestruturas estão sempre em interação. Em compensação,ele afirma claramente que a língua não é assimilável a um instrumento de produção. Ora, é precisamente esta assimilação que será formulada por Stálin, numa tentativa de dar uma imagem unificante, homogênea, neutra da língua em relação à luta de classes, o que o leva, paradoxalmente, a uma posição própria do objetivismo abstrato. Sabemos sobre que motivações de política interna (a questão das línguas nacionais na U.R.S.S.) repousava sua argumentação. Bakhtin denuncia o perigo de toda sistematização ou formalização exagerada das novas teorias: um sistema que estanca, perde sua vitalidade, seu dinamismo dialético. A versação poderia se dirigir tanto a Marr como a Stálin. Bakhtin define a língua como expressão das relações e lutas sociais, veiculando e sofrendo o efeito desta luta, servindo, ao mesmo tempo, de instrumento e de material. Como sua obra permaneceu desconhecida tanto do público soviético como do público ocidental,só o confronto de posições extremas reteve a atenção.
Todos aqueles que tinham escrúpulos em considerar a língua como uma superestrutura suspiraram aliviados em 1950, e procuraram esquecer a relação da língua com as estruturas sociais até uma época muito recente, com a emergência da sociolingüística como lingüística e não como variante periférica ou meramente anedótica.
Na terceira parte do livro, consagrada ao estudo da transmissão do "discurso de outrem", Bakhtin fez uma aplicação prática das teses desenvolvidas nas duas primeiras. Dessa forma, busca demonstrar a natureza social e não individual das variações estilísticas. Com efeito, a maneira de integrar "o discurso de outrem"no contexto narrativo reflete as tendências sociais da interação verbal numa época e num grupo social dado. Apóia-se, para firmar sua tese, em citações extraídas de Púchkin, Dostoievski,Zola, Thomas Mann, isto é, de obras individuais que ele insere no contexto da época e, portanto, da orientação social que aí se manifesta. Aborda, igualmente, o papel do "narrador", que toma o lugar do autor da narrativa, com as interferências que isso implica. Esta é, certamente, uma de suas contribuições mais originais. Não há para ele fronteira clara entre gramática e estilística.O discurso indireto constitui um discurso encaixado no interior do qual se manifesta uma interação dinâmica. A passagem do estilo direto ao estilo indireto não se faz de maneira mecânica (isto lhe dá a oportunidade de criticar os exercícios escolares "estruturais", critica que permanece totalmente pertinente hoje em dia). Essa passagem implica análise e reformulação completa,acompanhadas de um deslocamento e/ou de um entrecruzamento dos "acentos apreciativos" (modalidade).
A análise estilística, parte integrante da lingüística, aparece como a preocupação essencial de Bakhtin. A lingüística--como, ao que parece, para Saussure--surge como o instrumento privilegiado e indispensável para levar a bom termo os trabalhos de análise literária, que ocuparão a maior parte de sua vida. Como Saussure, ele é, em vários aspectos, um homem do século XIX, um homem de gabinete, de cultura enciclopédica, um verdadeiro "não-especialista". É entre pessoas assim que, conseqüentemente, encontramos os melhores especialistas de uma disciplina.


quinta-feira, 18 de setembro de 2014

TEXTO IMPRESCINDÍVEL DE BAKHTIN - ARTE E RESPONSABILIDADE

Amigos leitores e estudiosos de Bakhtin

O blog disponibiliza agora um texto basilar para entendimento de muitos pensamentos de Bakhtin. Arte e Responsabilidade. Texto fácil, curto, bom entendimento e um colosso de inteligência.

Aproveitem e forte abraço

ARTE E RESPONSABILIDADE – Mikhail Bakhtin

Chama-se mecânico ao todo se alguns de seus elementos estão unificados apenas no espaço e no tempo por uma relação externa e não os penetra a unidade interna do sentido. As partes desse todo, ainda que estejam lado a lado e se toquem, em si mesmas são estranhas uma às outras.

Os três campos da cultura - a ciência, a arte e a vida - só adquirem unidade no indivíduo que os incorpora à sua própria unidade. Mas essa relação pode tornar-se mecânica, externa. Lamentavelmente, é o que acontece com maior freqüência. O artista e o homem estão unificados em um indivíduo de forma ingênua, o mais das vezes mecânica: temporariamente o homem sai da “agitação do dia-a-dia" para a criação como para outro mundo "de inspiração, sons doces e orações". -O que resulta daí? A arte é de uma presunção excessivamente atrevida, é patética demais, pois não lhe cabe responder pela vida que, é claro, não lhe anda no encalço. "Sim, mas onde é que nós temos essa arte - diz a vida -, nós temos a prosa do dia-a-dia".

Quando o homem está na arte não está na vida e vice-versa. Entre eles, não há unidade e interpenetração do interno na unidade do indivíduo. O que garante o nexo interno entre os elementos do indivíduo? Só a unidade da responsabilidade. Pelo que vivenciei e compreendi na arte, devo responder com minha vida para que o todo vivenciado e compreendido nela não permaneçam inativos. No entanto, a culpa também está vinculada à responsabilidade. A vida e a arte não devem só arcar com a responsabilidade mútua mas também com a culpa mútua. O poeta deve compreender que a sua poesia tem culpa pela prosa trivial da vida, e é bom que o homem da vida saiba que a sua falta de exigência e a falta de seriedade das suas questões vitais respondem pela esterilidade da arte. O indivíduo deve tornar-se inteiramente responsável: todos os seus momentos devem não só estar lado a lado na série temporal de sua vida, mas também penetrar uns nos outros na unidade da culpa e da responsabilidade.

E nada de citar a "inspiração" para justificar a irresponsabilidade. A inspiração que ignora a vida e é ela mesma ignorada pela vida não é inspiração mas obsessão. O sentido correto e não o falso de todas as questões antigas, relativas às inter-relações de arte e vida, à arte pura, etc., é o seu verdadeiro patos apenas no sentido de que arte e vida desejam facilitar mutuamente a sua tarefa, eximir-se da sua responsabilidade, pois é mais fácil criar sem responder pela vida e mais fácil viver sem contar com a arte.

Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade.

Bakhtin, M. Arte e Responsabilidade. In: Estética da Criação verbal. 4.ed. Martins Fontes. São Paulo. 2003. Trad. de Paulo Bezerra.